“Todo cristão que não é
missionário é um impostor”
Na mesma
época em que se projetava um desenvolvimento glorioso para a economia nacional
– o chamado “milagre econômico” dos anos 1960 e 70 –, outro setor do país, a
Igreja Evangélica, também experimentava tempos de intensa euforia. Abarrotadas
de jovens atraídos por uma mensagem cristã atenta aos seus anseios, as
congregações faziam planos dourados para o futuro. A idéia geral era
transformar o país no celeiro da obra missionária global. Difícil era encontrar
igreja que não tivesse um departamento de missões e planos de enviar obreiros
para ganhar o mundo para Cristo. A mensagem escatológica, então em alta nos
púlpitos, era uma só: pregar o Evangelho a toda criatura, a fim de que o Senhor
voltasse depressa. Organizações missionárias surgiam a cada dia, atraindo gente
que desejava dedicar a vida à boa obra.
No
entanto, neste início da segunda década do século 21, o que se nota é que, se
tudo não passou de mero entusiasmo – os números vigorosos da presença
missionária brasileira mostram que não –, a situação atual é bem diversa
daquela que a geração anterior projetou. Missão rima com visão e ação, e as
duas palavras andam bem distantes da maioria das igrejas evangélicas
brasileiras, segundo especialistas em missiologia. Mesmo com o acelerado
crescimento numérico dos que professam a fé evangélica no país, que seriam
quase 20% dos brasileiros de acordo com projeções baseadas em dados oficiais, o
envolvimento dos crentes nacionais com a obra missionária, em todas as suas
instâncias – seja social ou evangelística –, segue a passos bem mais lentos.
O
conhecimento das demandas missionárias é exposto em cada campanha ou congresso.
Testemunhos são derramados nos púlpitos, levando a muita comoção e decisões
pessoais. Passado algum tempo, contudo, os compromissos assumidos por um maior
envolvimento com a obra de evangelização e intervenção social se esfriam e a
missão de alcançar o mundo com o amor de Cristo fica a cargo dos missionários
de carreira – isso quando obreiros enviados não são simplesmente esquecidos no
campo. “Infelizmente, o jargão de que cada cristão é um missionário está sendo
esquecido. A ênfase em muitas igrejas é pelo crescimento da congregação local”,
atesta o professor Diego Almeida, docente do mestrado em missiologia do
Seminário de Educação do Recife (PE). “O serviço acaba concentrado nas mãos
de profissionais.”
Para o
pastor José Crispim Santos, promotor setorial da Junta de Missões Mundiais da
Convenção Batista Brasileira (CBB) – uma das maiores organizações missionárias
do mundo, com mais de 600 obreiros no campo –, a Igreja brasileira está bem
inteirada acerca dos desafios missionários da atualidade, mas as ações ainda
não são suficientes para o tamanho deles. “Há muitas agências missionárias
divulgando o tempo todo, além da mídia que noticia fatos que demonstram o
sofrimento humano, físico e espiritual ao redor do planeta. Nossa avaliação é
que, diante deste cenário de grande carência espiritual, a Igreja tem dado sua
contribuição – entretanto, isso é insuficiente, quando a missão é, de fato,
tornar Cristo conhecido em toda a Terra”.
DISCURSO
E PRÁTICA
O que
parece evidente na paradoxal situação da Igreja evangélica brasileira, um
contingente com enorme potencial humano e financeiro, mas pouco utilizado
quando o assunto é o “Ide” de Jesus; é que a miopia missionária passa pela
liderança – uma barreira difícil de ser transposta, conforme relatado por gente
que trabalha em ministérios e departamentos específicos. Essa tendência à
inação, alimentada pela valorização de outras prioridades, acaba contaminando o
rebanho. Quando a visão do líder não passa das paredes do templo, dificilmente a
igreja desenvolve alguma intervenção importante, até mesmo em sua comunidade.
“De fato, quando o dirigente tem visão e é entusiasmado com a obra missionária,
a igreja tende a acompanhá-lo. Da mesma forma, o inverso é verdadeiro.
Entretanto, há algumas exceções; quando a igreja possui promotores de missões,
esses batalhadores realizam verdadeiros milagres”, continua Crispim.
Acontece que a própria estrutura de funcionamento
das igrejas, muitas vezes baseado em decisões de poucas pessoas, quando não
apenas de um líder centralizador, torna ainda mais difícil o convencimento de
que a missão é de toda pessoa que um dia recebeu a Cristo como Salvador.
“Dentro do atual quadro religioso brasileiro, creio que o nosso exacerbado
clericalismo é um enorme obstáculo para uma compreensão e prática da obra
missionária em termos de missão integral”, atesta o professor de teologia e
história eclesiástica da Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São
Paulo, Paulo Ayres. Mas as barreiras para se desenvolver uma ação missionária
mais eficiente, ainda que possam nascer no clero, também são agravadas pelo
perfil do crente contemporâneo. “Hoje, grande parte dos membros de nossas
congregações é constituída mais por assistentes passivos e clientes em
busca de produtos religiosos do que irmãos e irmãs na fé com forte compromisso
e prática missionárias, especialmente em suas atividades cotidianas no mundo
secular onde vivem e trabalham”, avalia o religioso, que é bispo emérito da
Igreja Metodista do Brasil.
No seu
entender, a Igreja tem utilizado estratégias equivocadas. Por outro lado, Ayres
lembra que é muito mais cômodo terceirizar o compromisso missionário do que
executá-lo pessoalmente, ainda que a missão específica possa ser realizada no
próprio bairro onde se reside. “É mais cômodo contribuir para enviar um
missionário ao Cazaquistão ou a Guiné-Bissau do que ir pessoalmente, no poder
do Espírito Santo, trabalhar como voluntário no Piauí ou na Cracolândia, em São
Paulo, ainda que seja por um curto período de tempo, como evangelista, obreiro
com crianças, dentista ou trabalhador social”, comenta. Assim, além da omissão
do Corpo de Cristo por falta de conhecimento ou disposição, a Igreja corre
riscos de ter seu trabalho missionário hipertrofiado na medida em que se
transmite toda a responsabilidade do serviço cristão para as agências
especializadas – um problema acentuado principalmente em comunidades de fé
ligadas a grandes associações missionárias.
MOBILIZAÇÃO
Do tripé
normalmente exposto nos eventos temáticos de missões (“contribuir, orar e ir”),
em geral só se desenvolve mais efetivamente o primeiro, e ainda assim em
patamares muito abaixo do que as igrejas poderiam fazer. Um levantamento feito pela
Missão Horizontes apontou que o investimento médio per capita do
crente brasileiro em missões durante um ano inteiro é menor do que o preço de
uma latinha de Coca-Cola – algo em torno de irrisórios R$ 2,50. Para o
missionário e pastor batista Ricardo Magalhães, que atua em Portugal a serviço
da Missão Cristã Européia ao lado da mulher e também obreira Priscila, a escassez
de investimento no setor missionário está mais atrelada à falta de visão do que
de recursos. “De maneira geral, a Igreja brasileira não tem problemas com
finanças, porque ela sabe se mexer para gerar fundos quando quer e para o
que quer. E isso, quando se sabe que não há falta de pessoas querendo ir aos
campos: inúmeros missionários só aguardam recursos para ir”, completa. Assim, o
aspecto da oração, sem a visibilidade e sem o apelo de outros ministérios da
igreja, fica naturalmente reduzido a pequenos grupos.
De olho na mobilização da igreja para orar, uma das
ações das diversas organizações missionárias é publicar sempre em seus boletins
os motivos de intercessão nos campos, pelos missionários e pelos desafios a
serem superados. A JMM já utiliza até mesmo mensagens de SMS para pessoas
cadastradas, que recebem torpedos com pedidos urgentes de intercessão. Já o
terceiro passo, o de ir, é o maior desafio. Seja para pequenas viagens
missionárias ou para partir definitivamente rumo ao campo, entre o desejo, o
chamado, a preparação e a missão há de fato uma longa trajetória geralmente não
concluída. Não são poucos os casos de vocações que se esfriam até mesmo dentro
dos seminários, ou de leigos envolvidos com a obra serem sufocados com o
ativismo religioso. É gente bem intencionada que acaba direcionando seu tempo,
recursos e esforços mais para dentro do que para fora da igreja.
“As
comunidades evangélicas têm caído em um dos dois extremos: ou elas se fecham a
um diálogo com a sociedade ou se abrem excessivamente para uma vontade popular,
abraçando um discurso econômico de prosperidade”, sustenta o missionário
Alesson Góis, da Igreja Congregacional, que coordena o ministério independente
Vidas em Restauração (VER). “O mundo não precisa de um cristianismo pregado,
mas vivido. Todo cristão que não é um missionário é um impostor, pois é muito
egoísta receber toda a graça e amor de Deus e não compartilhá-los com o
próximo”. Envolvendo cerca de 60 jovens de diversas denominações, entre
batistas, presbiterianos, congregacionais e membros de igrejas diversas como a Assembléia
de Deus e a Sara Nossa Terra, o ministério se encontra todos os sábados no
Parque Treze de Maio, no centro de Recife. Os jovens se reúnem como uma roda de
conversa, mas sem se caracterizar como uma liturgia ou como uma extensão da
igreja institucional. “Muita gente se surpreende pelo fato de sermos cristãos e
conversarmos com eles sem forçar a barra para que se convertam”, comenta Góis.
PRESENÇA
NOTADA
Para o
missionário e pastor presbiteriano Ronaldo Lidório, parte da frustração de
setores da Igreja vem justamente daquela expectativa superestimada em relação
ao seu papel na evangelização do mundo, que acabou não se concretizando:
“Pensamos que rapidamente encontraríamos uma veia missionária comparada à da Coréia
do Sul, o que ainda não aconteceu”, reconhece. Mesmo assim, ressalva, existe um
outro lado. “Creio que corremos perigo ao focarmos somente nas negligências. É
certo que a Igreja nacional caminha com bons passos”. Ele cita como exemplo a
presença evangélica em povos indígenas, setor no qual seu trabalho é
respeitadíssimo. Além de ter vivido por dez anos entre o povo konkomba, de Gana
(África), ele agora está envolvido com o Projeto Amanajé, de evangelismo e assistência
a indígenas na Amazônia. “A Igreja atua em 182 etnias indígenas e coordena
quase 260 programas sociais entre esses povos”, enumera. “Além disso,
comunidades ribeirinhas, até pouco tempo esquecidas pelas igrejas, hoje contam
com dezenas de programas cristãos, tanto de evangelização como de ação social.”
Lidório
destaca ainda o trabalho de organizações regionais, como a Juventude Evangélica
da Paraíba (Juvep), que tem plantado igrejas e centros de atendimento popular
pelo Nordeste. “O sertão hoje possui menos da metade das áreas não
evangelizadas em relação ao quadro de 15 anos atrás, e essa mobilização se deu
a partir de iniciativas como a Juvep e outros programas dedicados aos
sertanejos”. Já na área transcultural – a mais conhecida e romantizada do
trabalho missionário, que envolve a figura clássica do obreiro que larga sua
terra para pregar o Evangelho num canto qualquer do mundo –, Lidório garante
que as igrejas e agências brasileiras também marcam presença. “Jamais tivemos
tantos missionários no exterior como em nossos dias, e não é incomum
encontrarmos hoje brasileiros ocupando posições de liderança em equipes e
missões na África e na Ásia”, informa. Pelas estatísticas disponíveis, hoje
atuam cerca de 2,3 mil missionários brasileiros no exterior, espalhados por
mais de 50 países. “A Igreja brasileira é uma das maiores representações de
ações missionárias na atualidade, embora o número de obreiros e de ações
missionárias seja realmente bem menor do que poderia e deveria ser”, conclui
Ronaldo Lidório.
No
entender do especialista em missiologia Diego Almeida, ministérios como o VER
têm se tornado cada vez mais comum, não somente no Brasil, mas em diversos
países. “Quando a Igreja não investe nos vocacionados, eles se preparam por
conta própria”. Foi justamente o caso da estudante de psicologia e funcionária
pública Quésia Cordeiro, de 23 anos. Após decidir dedicar-se às missões após os
congressos temáticos de que participou, ela não recebeu nenhum suporte para dar
os passos seguintes na preparação. “Não recebi nenhuma capacitação os
discipulado. Tive que correr atrás para manter a chama acesa”, conta a jovem.
Com conhecimento próprio, ela constata: “O despertamento para a obra
missionária não é uma coisa contínua, mas pontual, restrita a conferências e
eventos.” Para Almeida, mesmo que as igrejas não mostrem a Palavra de Deus, ela
acaba se cumprindo de outras formas – “O triste é ver que a instituição criada
para apresentar Jesus ao mundo não faz parte desse processo”, lamenta o
professor.
“Nossa
missão é implantar o Reino de Deus”
Para o
bispo Ayres, entender missões como mero proselitismo é atitude reducionista.
Especialista em missiologia, tendo atuado como
evangelista em Portugal e no Nordeste brasileiro, Paulo Ayres é hoje bispo
emérito de sua denominação, a Igreja Metodista, e professor de teologia e
história eclesiástica. Ele falou com CRISTIANISMO HOJE sobre o panorama
evangélico brasileiro em relação à missão integral da Igreja.
CRISTIANISMO
HOJE – Ao mesmo tempo em que a Igreja brasileira cresce numericamente, o
conhecimento e envolvimento com missões parece decrescer a cada geração. Por
quê?
PAULO
AYRES – O crescimento numérico do povo evangélico brasileiro, em minha opinião,
não tem sido acompanhado de um maior compromisso missionário em todos os campos
da vida brasileira que reclamam um eficaz testemunho evangélico. As igrejas
evangélicas brasileiras, em sua maioria, têm uma visão reducionista sobre o que
é missão, entendendo-a mais em termos de evangelismo visando à conversão
individual. Outras dimensões missionárias, como o serviço cristão aos
necessitados, o ensino na doutrina dos apóstolos, o testemunho público do
Evangelho, a ética e a moral cristãs (a práxis do Evangelho), ou até mesmo o
culto, ainda que consideradas como importantes por algumas igrejas, acabam, na
prática missionária, sendo somente – quando muito – andaimes secundários para a
conversão individual.
Qual o
resultado prático desse panorama?
Essa
visão reducionista faz com que missão seja entendida e praticada mais como
estratégias para conquistar almas para Cristo do que realmente levar à frente o
objetivo de sinalizar a presença do Reino de Deus no mundo. Daí a obsessão pelo
crescimento numérico das igrejas – melhor dizendo, das denominações – a
qualquer custo, mesmo em detrimento dos valores maiores do Evangelho. É por
isso que o crescimento numérico dos evangélicos brasileiros, apesar da
extraordinária transformação na vida pessoal de milhões de pessoas, não tem
causado maior impacto transformador em nossa sociedade.
O que
fazer para mudar esse quadro de crescimento sem transformação social?
Creio que
precisamos, com urgência, de uma nova reforma no evangelismo brasileiro, que
deverá ter como seu centro a compreensão e a prática da missão como obra de
Deus na implantação do seu Reino entre nós. Se deixarmos de lado a obra humana
forjada nas regras do mercado e da exacerbada competição institucional entre as
igrejas, contribuiremos para a construção de uma sociedade com alto padrão
espiritual e ético, segundo a maneira de ser exposta por Jesus no Sermão do
Monte.
Presença
missionária brasileira
2.300 é o número aproximado de
missionários brasileiros no exterior
50 são os países onde eles atuam
600 deles são ligados à Junta de
Missões Mundiais da CBB
Vi isso no Blog do Lino Título: O
crescente desinteresse brasileiro por missões